“Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos céus” [Jesus em Mateus 5. 3]
“O que faz você feliz?” A pergunta é o lema da propaganda de uma rede de supermercados. O próprio comercial responde que a felicidade está relacionada a compra de seus produtos. A cultura contemporânea valoriza muito o conceito de felicidade. Aliás, a felicidade se tornou uma obsessão e até mesmo uma obrigação.
O que consultórios de psicólogos, academias de ginástica, igrejas carismáticas e baladas de música eletrônica têm em comum? Ora, em todos esses ambientes as pessoas estão buscando “a felicidade”. O vazio da alma busca satisfação em alguns aspectos exteriores como corpo atlético, o êxtase com a música alta, a família “margarina”, “espiritualidade eletrizante” etc.
1. O conceito de felicidade desenhado por Jesus Cristo no Sermão do Monte é contracultural. Jesus Cristo não é um guru de autoajuda, mas sim o Senhor Soberano que nos mostra a cruel realidade do mundo e de próprias nossas vidas. A felicidade segundo Jesus não deixa ninguém como um “bobo-alegre”, mas mostra-nos a face real da nossa existência.
Nenhum filósofo grego ou romano definia a felicidade em termos cristãos. A felicidade sempre era a busca do prazer ou do contentamento ou ainda da vida cívica e do comportamento correto, mas nunca associada ao choro, a dor, a perseguição e a insuficiência. Por esse motivo que a mensagem de Cristo é contra a cultura. Não é à toa que o apóstolo Paulo escreveu:
Pois a mensagem da cruz é loucura para os que estão perecendo, mas para nós, que estamos sendo salvos, é o poder de Deus [...] Visto que, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por meio da sabedoria humana, agradou a Deus salvar aqueles que crêem por meio da loucura da pregação. [1 Coríntios 1. 18, 21]
A palavra portuguesa “bem-aventurados” foi elevada a uma categoria acima de “felicidade”, mas no texto bíblico não se trata de uma mudança semântica, mas sim conceitual [1]. Jesus redefiniu o que significa a felicidade, ou seja, mais uma vez Jesus redefiniu a nossa cultura.
2. É bom destacar que o Sermão do Monte não foi escrito para mostrar o que devemos fazer a fim de alcançar o Reino de Deus, mas sim para caracterizar os integrantes desse reino.As bem-aventuranças são a graça manifestada. Mais do que mandamentos o Senhor Jesus nos lembra qual é a posição na vida que cabe a um cristão nascido de novo. Qualquer tentativa de fazer das bem-aventuranças regras para alcançar o céu é uma escandalosa distorção da graça divina. O legalismo em nada ajuda, pois seguir regras sem o coração regenerado é o mesmo que lavar porcos na lama [2].
3. A felicidade segundo Jesus não é um sentimento, mas uma maneira de existir. É um caráter [3]. O “adjetivo” feliz torna-se nesse texto um “substantivo”, ou seja, a conceituação de felicidade segundo Jesus não é um mero estado de espírito, mas sim uma forma de “ser”. O termo é “sou feliz” e não “estou feliz” [4].
O caráter da felicidade como ser mostra que “ser feliz” independe de uma circunstância favorável, como escreveu o profeta Habacuque:
Porquanto, ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na vide; o produto da oliveira minta, e os campos não produzam mantimento; as ovelhas da malhada sejam arrebatadas, e nos currais não haja vacas, todavia, eu me alegrarei no SENHOR, exultarei no Deus da minha salvação. JEOVÁ, o Senhor, é minha força, e fará os meus pés como os das cervas, e me fará andar sobre as minhas alturas (3. 17-19).
Este sermão não analisará as oito bem-aventuranças, pois tal tarefa demandaria uma série de sermões, mas ficaremos na noite de hoje com a primeira “felicidade” definida como a “pobreza de espírito”. Apesar de ficar preso em uma única beatitude é bom frisar que o sermão de Jesus é integral, ou seja, uma bem-aventurança depende de outra.
4. A “pobreza de espírito” traz a ideia de fraqueza, insegurança e falta de defesa. É a contrapartida de autossuficiência. O orgulho não tem o seu espaço no Reino dos Céus. A humildade é mais do que uma visão de autopiedade, mas sim o reconhecimento de sua condição espiritual. O “pobre de espírito” não é analisado em um tribunal e definido por um juiz, mas é parte do autoconhecimento do cristão. O profeta Isaías mostrou bem como o Alto e Sublime Deus está ao lado do humilde:
Pois assim diz o Alto e Sublime, que vive para sempre, e cujo nome é santo: "Habito num lugar alto e santo, mas habito também com o contrito e humilde de espírito, para dar novo ânimo ao espírito do humilde e novo alento ao coração do contrito. [Isaías 57. 15]
O “pobre de espírito” é mais do que aquele que aplicação humilhação a si, mas também aquele que é objeto da humilhação vinda dos eventos da vida. A vida é especialista em moldar os homens em sofrimentos e tristezas sendo que podemos reagir bem ou mal às adversidades. Aqueles que reagem mal ficam amargos e rudes com o sofrimento, enquanto outros permitem que o sofrimento molde o seu caráter, como disse o escritor francês Bernanos: “Os homens são como nozes, só revelam o seu melhor quando são esmagados” [5].
“Até um rei deve ver a si mesmo como pobre quando está diante de Deus” [6]. E Davi era assim (cf. Salmo 51).
5. O primeiro passo para a felicidade de Jesus Cristo é o reconhecimento de nossas fraquezas [7]. A salvação sempre começa com o reconhecimento do pecado [8]. Ninguém que se acha justo alcançará a salvação, pois somente aquele que dela necessita buscará Cristo como médico que sara. Portanto, nada podemos oferecer que Deus tenha falta, comprar o que o Senhor poria a venda ou mesmo reivindicar de Deus. O Senhor nada nos deve. [9]
06. A autossuficiência perante o Senhor é loucura. O suficiente em si esquece que o mais importante é ser rico para com Deus. Podemos ser suficientes em dinheiro, mas também em saúde, inteligência, nacionalidade e tantas outras coisas que, colocadas com ídolos, nos afastam de Deus. Como lembra Jesus ao falar do rico insensato:
Então lhes disse: "Cuidado! Fiquem de sobreaviso contra todo tipo de ganância; a vida de um homem não consiste na quantidade dos seus bens". Então lhes contou esta parábola: "A terra de certo homem rico produziu muito bem. Ele pensou consigo mesmo: ‘O que vou fazer? Não tenho onde armazenar minha colheita’. "Então disse: ‘Já sei o que vou fazer. Vou derrubar os meus celeiros e construir outros maiores, e ali guardarei toda a minha safra e todos os meus bens. E direi a mim mesmo: Você tem grande quantidade de bens, armazenados para muitos anos. Descanse, coma, beba e alegre-se’. "Contudo, Deus lhe disse: ‘Insensato! Esta mesma noite a sua vida lhe será exigida. Então, quem ficará com o que você preparou?’ "Assim acontece com quem guarda para si riquezas, mas não é rico para com Deus". [Lucas 12. 15-21]
07. O caminho santidade é o reconhecimento da nossa dívida para com Deus. É humilhação sincera e não autopiedade e autojustificação que no fundo é orgulho cedo.
Dois homens subiram ao templo para orar; um era fariseu e o outro, publicano. O fariseu, em pé, orava no íntimo: ‘Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens: ladrões, corruptos, adúlteros; nem mesmo como este publicano. Jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho’."Mas o publicano ficou à distância. Ele nem ousava olhar para o céu, mas batendo no peito, dizia: ‘Deus, tem misericórdia de mim, que sou pecador’. "Eu lhes digo que este homem, e não o outro, foi para casa justificado diante de Deus. Pois quem se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado. [Lucas 18. 10-14]
“Ostentação é a reação do orgulho ao sucesso. Autopiedade é a reação do orgulho ao sofrimento. A ostentação diz: “Eu mereço admiração por ter conseguido tanto sucesso”. A autopiedade diz: “Eu mereço admiração por ter me sacrificado tanto”. A ostentação é a voz do orgulhoso no coração dos fortes. A autopiedade é a voz do orgulho no coração dos fracos”. [10]
08. E dos pobres de Espírito é o Reino dos Céus. Poderia haver recompensa melhor para alguém que nada tem?