O relato que lemos nestas duas passagens refere-se ao mesmo acontecimento, mas existem pormenores diferentes que fazem com que se completem e até mesmo sirvam para explicar algumas das nossas dúvidas ou neste caso, para basear as considerações que gostaria de partilhar convosco sobre o que acabamos de ler.
Juntando estes dois relatos nós podemos encontrar três tipos diferentes de espiritualidade.
Nos dias que correm a expressão “espiritualidade” está muito em voga, mesmo fora do meio religioso, mas não é sobre esse ou esses géneros de espiritualidade que vos quero falar, mas daquela espiritualidade que deve ser inerente aqueles que são seguidores de Cristo, mas que tantas vezes se encontra deficiente
INTRODUÇÃO 1. O homem é um ser religioso O homem é um ser religioso. Desde os tempos mais remotos, ele tem levantado altares. Há povos sem leis, sem governos, sem economia, sem escolas, mas jamais sem sua religião. O homem tem sede do Eterno. Foi Deus mesmo que colocou a eternidade no coração do homem.
Cada religião busca oferecer ao homem o caminho de volta para Deus. As religiões são repetições do malogrado projecto da Torre de Babel.
2. O homem é um ser confuso espiritualmente
Só há duas religiões no mundo: a revelada e aquela criada pelo próprio homem. Uma que tenta abrir caminhos da terra ao céu; a outra, abre o caminho a partir do céu.
Uma é humanista, a outra é teocêntrica. Uma prega a salvação pelas obras; a outra, pela graça.
O cristianismo é a revelação que o próprio Deus faz de si mesmo e do seu plano redentor. As demais religiões representam um esforço inútil de o homem chegar até Deus através dos seus méritos.
3. O homem é um ser que idolatra a si mesmo.
Para além de todas as religiões existentes, a religião que prevalece hoje é a autolatria. O homem tornou-se o centro de todas as coisas. Na pregação contemporânea, Deus está ao serviço do homem e não o homem a serviço de Deus. A vontade do homem é que deve ser feita no céu e não a vontade de Deus na terra. O homem de hoje não busca conhecer a Deus, mas sentir-se bem. A luz interior tornou-se mais importante do que a revelação escrita. Ou seja, as Escrituras.
Hoje o que os homens procuram não é o culto racional, mas sensorial. O homem não quer conhecer, quer sentir.
O sentimento prevaleceu sobre a razão. As emoções assentaram-se no trono e a religião está se transformando num ópio, um narcótico que anestesia a alma e coloca em sono profundo as grandes inquietações da alma.
Marcos capítulo 9 oferece-nos uma reposta sobre modelos de espiritualidade que se evidenciam muito em nossos dias:
I. A ESPIRITUALIDADE DO MONTE
Pedro, Tiago e João sobem o Monte da Transfiguração com Jesus, mas não alcançam as alturas espirituais da intimidade com Deus.
No capitulo anterior Cristo falou da cruz, agora ele revela a glória. O caminho da glória passa pela cruz.
Diante desta glória, a mente dos discípulos estava confusa e o coração fechado.
Eles estavam cercados por uma aura de glória e luz, mas um véu lhes ofuscava os olhos e tirava-lhes o entendimento.
1. Os discípulos andam com Jesus, mas não conhecem a intimidade do Pai
Jesus subiu o Monte da Transfiguração para orar. A motivação e o propósito de Jesus era estar com o Pai. A oração era o oxigénio da sua alma. Todo o seu ministério foi regado de intensa e perseverante oração.
Jesus está orando, mas em momento nenhum os discípulos estão orando com ele. Eles não sentem necessidade nem prazer na oração. Eles não têm sede de Deus.
Eles estão no monte a reboque, mas não estão alimentados pela mesma motivação de Jesus.
2. Os discípulos estão diante da manifestação da glória de Deus, mas, em vez de orar, eles dormem – (Lc 9.28,29).
Jesus foi transfigurado porque orou. Os discípulos não oraram e por isso foram apenas espectadores. Porque não oraram, ficaram agarrados ao sono.
A falta de oração pesou-lhes as pálpebras e cerrou-lhes o entendimento. As coisas de Deus não lhes davam entusiasmo; elas cansavam os seus olhos, enfadava-lhes os ouvidos causando-lhes o sono.
3. Os discípulos experimentam um êxtase, mas não têm discernimento espiritual – (9.7,8).
Os discípulos contemplaram quatro factos milagrosos: (1) A transfiguração do rosto de Jesus, (2) a aparição em glória de Moisés e Elias, (3) a nuvem luminosa que os envolveu (4) e a voz do céu que trovejava em seus ouvidos.
Naquele lugar estava representado o Deus Tri-Uno, Moisés, o maior legislador em representação da Lei de Deus e Elias representando os profetas.
Lá estavam também, Pedro, Tiago e João, os apóstolos mais íntimos de Jesus.
Apesar de estarem envoltos num ambiente de milagres, faltou-lhes discernimento em quatro questões básicas: Em primeiro lugar, eles não discerniram a centralidade da Pessoa de Cristo (9.7,8). Os discípulos estão cheios de emoção, mas vazios de entendimento.
Eles quiseram construir três tendas, dando a Moisés e a Elias a mesma importância de Jesus. Querem igualar Jesus aos representantes da Lei e dos Profetas.
Como o restante do povo, eles também estão confusos quanto à verdadeira identidade de Jesus (Lc 9.18,19). Não discerniram a divindade de Cristo. Andam com Cristo, mas não lhe dão a glória devida ao seu nome (Lc 9.33).
Onde Cristo não recebe a preeminência, a espiritualidade está fora de foco. Jesus é maior do que do Moisés e Elias. A Lei e os Profetas apontaram para ele.
O Pai então corrigiu a teologia dos discípulos, dizendo-lhes: “Este é o meu Filho, o meu eleito; a ele ouvi” (Lc 9.34,35). Jesus não pode ser confundido com os homens, ainda que com os mais ilustres. Ele é Deus. Para ele deve ser toda devoção.
Nossa espiritualidade deverá ser cristocêntrica. A presença de Moisés e Elias naquele monte longe de empalidecer a divindade de Cristo, confirmava que de facto ele era o Messias apontado pela lei e pelos profetas.
Em segundo lugar, eles não discerniram a centralidade da missão de Cristo. Moisés e Elias apareceram para falar da iminente partida de Jesus para Jerusalém (Lc 9.30,31). A agenda daquela conversa era a cruz. A cruz é o centro do ministério de Cristo. Ele veio para morrer. Sua morte não foi um acidente, mas um decreto do Pai desde a eternidade. Cristo não morreu porque Judas o traiu por dinheiro, porque os sacerdotes o entregaram por inveja nem porque Pilatos o condenou por covardia. Ele voluntariamente se entregou por suas ovelhas (Jo 10.11), pela sua igreja (Ef 5.25). Toda espiritualidade que desvia o foco da cruz é cega de discernimento espiritual.
Satanás tentou desviar Jesus da cruz, impelindo a Herodes para matá-lo. Depois, ofereceu-lhe um reino. Mais tarde, levantou uma multidão para fazê-lo rei. Em seguida, suscitou Pedro para negá-lo. Já suspenso na cruz, a voz do inferno vociferou na boca dos insolentes judeus: “Desça da cruz, e creremos nele” (Mt 27.42). Se Cristo descesse da cruz, nós desceríamos ao inferno. Foi a morte de Cristo que nos trouxe vida e libertação.
A palavra usada para “partida” é a palavra êxodo. A morte de Cristo abriu as portas da nossa prisão e nos deu liberdade. Moisés e Elias entendiam isso, mas os discípulos estavam sem discernimento dessa questão central do Cristianismo (Lc 9.44,45).
Hoje há igrejas que aboliram dos púlpitos a mensagem da cruz. Pregam sobre prosperidade, curas e milagres. Mas, esse não é o evangelho da cruz, é outro evangelho e deve ser anátema! Em terceiro lugar, eles não discerniram a centralidade de seus próprios ministérios – (9.5). Eles disseram: “Bom é estarmos aqui”. Eles queriam a espiritualidade da fuga, do êxtase e não da luta. Queriam as visões arrebatadoras do monte, não os gemidos dolorosos do vale. Mas é no vale que o ministério se desenvolve.
É mais cómodo cultivar a espiritualidade do êxtase, e do conforto. É mais fácil estar no templo, perto de pessoas co-iguais do que descer ao vale cheio de dor e opressão.
Não queremos sair para fora. É mais fácil e cómodo fazer uma tenda no monte e viver uma espiritualidade fechada entre quatro paredes.
Permanecer no monte é fuga, é omissão, é irresponsabilidade. A multidão aflita espera-nos no vale!
Em quarto lugar, eles estão envolvidos por uma nuvem celestial, mas têm medo de Deus – (Lc 9.34). Eles se encheram de medo (Lc 9.34) ao ponto de caírem de bruços (Mt 17.5,6).
A espiritualidade deles é marcada pelo medo do sagrado. Eles não apenas não encontram prazer na comunhão com Deus através da oração, mas revelam medo de Deus.
Vêem Deus como uma ameaça. Eles se prostram não para adorar, mas para temer. Eles estavam aterrados (9.6).
Pedro, o representante do grupo, não sabia o que dizia (Lc 9.33).
Jesus não alimentou a patologia espiritual dos discípulos; pelo contrário, “Aproximando-se deles, Jesus tocou-lhes, dizendo: Erguei-vos, e não temais” (Mt 17.7).
O medo de Deus revela uma espiritualidade débil e sem discernimento.
II. A ESPIRITUALIDADE DO VALE (9.9-29)
Como nós lemos, os nove discípulos de Jesus estavam no vale cara a cara com o diabo, sem poder espiritual, colhendo um grande fracasso. A razão era a mesma dos três que estavam no monte: em vez de orar, estavam discutindo. Aqui aprendemos várias lições:
1. No vale há gente sofrendo o cativeiro do diabo sem encontrar na igreja solução para o seu drama – (9.18). Aqui está um pai desesperado (Mt 17.15,16). O diabo invadiu a sua casa e está destruindo a sua família, através da destruição seu único filho.
No auge do seu desespero o pai do jovem correu para os discípulos de Jesus em busca de ajuda, mas eles estavam sem poder.
2. No vale há gente desesperada precisando de ajuda, mas os discípulos estão perdendo tempo, envolvidos numa discussão infrutífera. Os discípulos estavam envolvidos numa interminável discussão com os escribas, enquanto o diabo estava agindo livremente sem ser confrontado. Eles estavam perdendo tempo com os inimigos da obra em vez de fazerem a obra (9.16).
A discussão, muitas vezes é saudável e necessária. Mas, passar o tempo todo discutindo é uma estratégia do diabo para nos manter fora da linha de combate.
Há crentes que passam a vida inteira discutindo empolgantes temas na Igreja, participando de retiros e congressos, mas nunca entram em campo para agir. Sabem muito e fazem pouco. Discutem muito e trabalham pouco.
Discussão sem acção é paralisia espiritual. O inferno vibra quando a igreja se fecha dentro de quatro paredes, em torno dos seus empolgantes assuntos.
O mundo perece enquanto a igreja está discutindo. Há muita discussão, mas pouco poder. 4. No vale, enquanto os discípulos discutem, há um poder demoníaco sem ser confrontado – sem oposição.
Há dois extremos perigosos que precisamos evitar no que respeita a esta matéria:
Em primeiro lugar, o subestimar o inimigo. Os liberais e os cépticos negam a existência e a acção dos demónios. Para eles o diabo é uma figura lendária e mitológica. Negar a existência e a acção do diabo é cair nas malhas do mais ardiloso satanismo.
Em segundo lugar, sobrevalorizar o inimigo. Há facções de chamados evangélicos que falam mais no diabo do que anunciam Jesus. Pregam mais sobre exorcismo do que arrependimento.
Vivem neurotizados pelo chamado movimento de batalha espiritual.
Como era esse poder maligno que estava agindo no vale?
O poder maligno que estava em acção na vida daquele menino era assombrosamente destruidor (9.18,22; Lc 9.39).
A casta de demónios fazia esse jovem ranger os dentes, convulsionava-o e lançava-o no fogo e na água, para matá-lo.
Era também surdo-mudo. O espírito imundo que estava nele o havia privado de falar e ouvir. Os ataques àquele jovem eram tão frequentes e fortes que o menino não crescia, mas ia definhando.
5. No vale, os discípulos estão sem poder para confrontar os poderes das trevas (9.18; Lc 9.40; Mt 17.16).
Porque razão os discípulos estão sem poder?
Em primeiro lugar, porque há demónios e demónios (9.29).
Há demónios mais resistentes que outros (Mt 17.19,21). Há hierarquia no reino das trevas (Ef 6.12). Em segundo lugar, porque os discípulos não oraram (9.28,29).
Não há poder espiritual sem oração. O poder não vem de dentro, mas do alto. Em terceiro lugar, porque os discípulos não jejuaram (9.28,29).
Nesta época em que o crente não era o habitat do Espírito Santo o jejum era importante. O jejum tornava o crente espiritualmente mais resistente, mostrando ao mesmo tempo a sua total dependência dos recursos de Deus.
Em quarto lugar, porque os discípulos tinham uma fé tímida (Mt 17.19,20).
A fé não olha para a adversidade, mas para as infinitas possibilidades de Deus.
Jesus disse para o pai do jovem: “Se podes, tudo é possível ao que crê” (9.23).
O poder de Jesus opera, muitas vezes, mediante a nossa fé.
III. A ESPIRITUALIDADE DE JESUS (9.30,31; Lc 9.29,31,44,51,53).
1. A espiritualidade de Jesus é fortemente marcada pela oração – (Lc 9.28).
Jesus subiu o Monte da Transfiguração com o propósito de orar e porque orou seu rosto transfigurou e suas vestes resplandeceram de brancura (Lc 9.29).
Dois factos são dignos de destaque na transfiguração de Jesus:
Em primeiro lugar, o seu rosto se transfigurou (Lc 9.29). Mateus diz que o seu rosto resplandecia como o sol (Mt 17.2). O nosso corpo precisa ser vazado pela luz do céu. Devemos glorificar a Deus no nosso corpo. A glória de Deus precisa brilhar em nós e resplandecer através de nós.
Em segundo lugar, suas vestes também resplandeceram de brancura (Lc 9.29). Mateus diz que suas vestes resplandeceram como a luz (Mt 17.2). Marcos escreve que as suas vestes se tornaram resplandecentes e sobremodo brancas, como nenhum lavandeiro na terra as poderia branquear. Para o oriental, roupa e pessoa são uma coisa só. Assim, eles descrevem vestimentas para caracterizar quem as usa.
As nossas vestes revelam o nosso íntimo mais do que cobrem o nosso corpo. Retratam o nosso estado interior e demonstram o nosso senso de valores, na Bíblia as vestes falam das nossas boas obras.
A oração de Jesus no monte ainda nos evidencia outras duas verdades:
Em primeiro lugar, na transfiguração Jesus foi consolado antecipadamente para enfrentar a cruz (Lc 9.30,31). Quando oramos Deus nos consola antecipadamente para enfrentarmos as situações difíceis. Jesus passaria por momentos amargos: seria preso, açoitado, cuspido, ultrajado, condenado e pregado numa cruz. Mas, pela oração o Pai o capacitou a beber aquele cálice amargo sem retroceder.
Quem não ora desespera-se na hora da aflição. É pela oração que triunfamos. Em segundo lugar, em resposta à oração de Jesus, o Pai confirmou o seu ministério (Mt 17.4,5).
Os discípulos sem discernimento igualaram Jesus a Moisés e Elias, mas o Pai defendeu Jesus, dizendo-lhes: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo; a ele ouvi”.
2. A espiritualidade de Jesus é marcada pela obediência ao Pai – (9.30,31; Lc 9.44,51,53).
A obediência absoluta e espontânea à vontade do Pai foi a marca distintiva da vida de Jesus. A cruz não era uma surpresa, mas uma agenda.
Ele não morreu como mártir, ele se entregou. Ele foi para a cruz porque o Pai o entregou por amor.
A conversa de Moisés e Elias com Jesus foi sobre sua partida para Jerusalém. A expressão usada foi êxodos. O êxodo foi a libertação do povo de Israel do cativeiro egípcio. Com o seu êxodo (Sua ida à cruz), Jesus nos libertou do cativeiro do pecado.
Sua morte nos trouxe libertação e a vida. Logo que desceu do monte, Jesus demonstrou com resoluta firmeza que estava indo para a cruz.
A verdadeira espiritualidade implica em obediência (Mt 7.22,23).
3. A espiritualidade de Jesus é marcada por poder para desbaratar as obras do diabo (9.25-27).
O ministério de Jesus foi comprometido com a libertação dos cativos. Ao mesmo tempo em que ele é o libertador dos homens, é o flagelador dos demónios. Jesus expulsou a casta de demónios do menino endemoninhado e disse: “Sai [...] e nunca mais tornes a ele” (9.25-27). O poder de Jesus é absoluto e irresistível. Os demónios bateram em retirada, o menino foi liberto, devolvido ao seu pai e todos ficaram maravilhados perante a majestade de Deus (Lc 9.43).
Que tipo de espiritualidade é que nós desejamos ter? Aquela do monte que nos proporciona experiências emocionais ou sensoriais e que nos dá sensação de bem estar, e em que somos simplesmente espectadores e receptores?
Talvez uma que esteja mais ligada com pessoas e com o mundo como a do vale, mas que é um tipo de espiritualidade que nada produz, sem poder nem confronto directo com o inimigo?
Precisamos de viver uma espiritualidade autêntica e pró-activa
Vivamos uma espiritualidade semelhante à do Senhor Jesus que tinha por base uma intima comunhão com o Pai através da oração, passando pela obediência e pela coragem em enfrentar constantemente o inimigo sem se deixar distrair pelas coisas insignificantes que são a forma de Satanás nos enfraquecer.
Procuremos viver esta espiritualidade e certamente que apesar de algumas vezes as coisas se tornarem mais difíceis, por outro lado nos trará maior comunhão com Deus e poder para vencermos as provas e as lutas que nos surgirão.
Que o Senhor abençoe e ajude neste propósito. Amén.